Mesmo que você não seja do Rio de Janeiro, deve ter acompanhado as notícias sobre as chuvas que atingiram a cidade no último mês e deixaram mais de 200 mortes e 600 desabrigados, e isso gerou uma comoção e tristeza geral, que foi transformada numa onda de solidariedade, e milhares de roupas e sapatos doados para as pessoas que perderam tudo.
Ontem vimos a notícia na internet e televisão: Justiça manda incinerar roupas doadas à população de Petrópolis, e apesar de num primeiro momento ser revoltante, precisamos pensar nos motivos que levaram à essa decisão.
Justiça manda incinerar roupas doadas à população de Petrópolis
O juiz deu uma prazo de quatro horas para a remoção de todo o material doado e pediu que a incineração ocorresse até a próxima quinta-feira (24), sob risco de multa no valor de R$ 150 mil em caso de descumprimento. Também ficou determinado que as peças que puderem ser reaproveitadas sejam entregues à entidade previamente indicada pela sociedade civil, que seja credenciada no Juizado da Infância e Juventude.
A ação foi movida pela Defensoria Pública, com o objetivo de impedir que as peças, já em um estado crítico, sejam doas e utilizadas pelos cidadãos que necessitam de novas vestimentas e também de dar um destino aos artigos que ocupavam a área de lazer do bairro.
O governo municipal ainda esclareceu que só realiza doações de roupas novas, em perfeitas condições, vindas da Receita Federal e que as roupas deixadas na praça eram de responsabilidade da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, que nega as acusações e reitera o fato de nunca ter recebido doações na praça.
Em nota, a Secretaria informou que a decisão deixou claro que as doações chegaram à praça por meio de movimentos sociais de solidariedade e que as equipes do Estado não tiveram qualquer contato com as peças.
Porque as peças ainda estavam lá?
Já se passou mais de 1 mês da chuva que caiu em Petrópolis, e no final de semana passado teve mais uma grande chuva lá, o que provavelmente piorou a situação em alguns lugares fragilizados, e também no local onde estavam as roupas e sapatos doados.
Mas, porque as peças ainda estavam lá depois de tanto tempo? As pessoas não estavam precisando? Estavam sim, mas roupa não é artigo de primeira necessidade para quem perdeu tudo – principalmente roupa em excesso.
As pessoas e órgãos responsáveis priorizaram a logística de entrega de alimentos, água, medicamento e produtos de higiene e limpeza, para que as pessoas resgatassem o mínimo de dignidade e sobrevivessem. Mas, além disso, muitas roupas que ainda estavam lá não deveriam nem mesmo terem ido pra lá.
Desde que começaram as doações, os pedidos informam que só devem ser doados item em boas condições de uso, mas os relatos foram (como sempre acontece) de itens estragados, sujos, rasgados, manchados, sapatos arrebentados / sem sola, e muita, mas muita coisa chegando sem identificação.
Se você já se mudou sabe a importância de escrever em cada uma das caixas o que tem dentro: itens de cozinha, roupas de cama, louças, livros e CDs? Isso facilita a distribuição pelo espaço novo, assim como também facilita na hora de chegar num espaço que está recebendo doações.
Mas a verdade é que muita gente doou coisas que não poderiam ser aproveitadas – mesmo por pessoas necessitadas e que não tem nada, tá? E a sensação que dá é que as pessoas doaram essas peças que não serviam mais para o uso por dois motivos:
- sentir que ajudou alguém
- terceirizar o descarte de peças
Roupa doada precisa estar em boas condições de uso
Sempre que eu vou fazer a etapa de revitalização do guarda-roupas das clientes eu peço pra separar peças que vão sair do guarda-roupas dela, e que ela pode vender ou doar, e às vezes acontece sim de ter peças que não estão em condições de serem doadas, e que devem ser descartadas.
Já falei aqui sobre algumas lojas de departamento, como a Renner, a C&A e a Zara que têm um programa de logística de descarte de roupas e sustentabilidade, justamente para receber essas peças que vão ser devidamente destruídas, e que qualquer pessoa pode participar.
Existem centenas de lixões espalhados pelo Brasil e grande parte desses resíduos é têxtil, porque as pessoas não param de comprar roupa, e se desfaz das peças que vão ser substituídas – o tempo todo. E aí, quando acontece alguma ação de doação de roupa depois de grandes incidentes, parece ser uma boa oportunidade para se desfazer do que não tem mais utilidade. E não é.
Imagina você abrir uma caixa de roupas imaginando que vai encontrar roupas para você se proteger do frio e vestir os seus filhos e encontrar meia sem par, roupa rasgada e suja, coisas em tamanhos que não servem pra ninguém da sua família – e agora vai virar mais um problema pra resolver no meio do caos.
Qual é a solução?
Quando essas coisas acontecem, a gente tem que doar o que a gente puder sim, principalmente se não vai te fazer falta e você pode substituir o que vai tirar do guarda-roupas ou da despensa. Mas, a quantidade de roupas doada mostra que as pessoas não só guardam peças em casa que já deveriam ter sido descartadas quanto que têm muito mais coisa em casa do que precisaria ter.
Eu não consegui doar pra Petrópolis, mas uma cliente minha doou numa instituição perto de casa. Eu vi a maioria das peças que ela doou, e nenhuma delas tinha defeito, rasgo, mau cheiro ou qualquer problema. Quem recebeu aquelas peças (e eu espero que tenham chegado a alguém!) com certeza vai usar as peças por algum tempo e se sentir bem, grato e feliz nelas.
Eu acho que a solução, primeira e antes de qualquer coisa é não fazer com ninguém o que você não gostaria que fizessem com você. E a médio e longo prazo, aprender a ser um consumidor consciente e não gerar tanto resíduo têxtil.
Quem sabe, numa próxima oportunidade de ajudar, você consiga doar em dinheiro economizado com as compras que não fez, pra que a pessoa compre uma roupa nova, do jeito que ela gostar (ou qualquer coisa que ela realmente esteja precisando)?